Apesar de representar uma demanda crescente, a população migrante na América Latina carece de acesso a produtos financeiros, deixando uma lacuna de atendimento para milhões de potenciais usuários.
Uma combinação de vieses, como percepção de alto risco, complexidade regulatória e falta de histórico financeiro, distancia bancos e fintechs dessa população, mesmo quando organismos internacionais alertam para a necessidade de bancarizar os deslocados, a fim de reduzir o impacto econômico que eles geram no país de acolhimento e proporcionar uma melhor gestão dos recursos. Além disso, é também uma oportunidade de negócio para atrair clientes promissores no nicho.
Por exemplo, a International Finance Corporation (IFC), do Banco Mundial, está tentando colocar investimentos de capital em bancos e fintechs que se concentram na prestação de serviços financeiros aos migrantes, especialmente os venezuelanos, que acumulam o maior número de emigrações da região. No entanto, a instituição afirma ter encontrado múltiplas barreiras na hora de conseguir parcerias.
"Há uma demanda muito alta no momento para o uso de serviços financeiros, mas os migrantes são mal atendidos pelas instituições financeiras, principalmente, devido a equívocos em relação a esse segmento", afirma à iupana Jeffrey Bower, chefe de investimentos para a América Latina e Caribe da IFC.
“O paradoxo é que as instituições financeiras formais pensam que os migrantes são um segmento de risco muito alto, onde as falências ou inadimplência seriam muito altas”, diz ele, explicando que estudos realizados na Colômbia e no Peru identificaram pouco interesse do setor nessa população, que, segundo seus indicadores, possui educação financeira, além de ser bom pagador.
“O que temos visto é que, quando se empresta a um migrante, ele paga mais o crédito do que um local, porque entende que, se não tiver acesso a esse veículo, não tem como gerar dinheiro”, acrescenta Bower.
O deslocamento de pessoas por causas econômicas, políticas e até ambientais, tem como principais protagonistas haitianos e venezuelanos, estes últimos em maior volume, pois se estima que mais de 6,1 milhões (de um país de pouco mais de 28 milhões de habitantes) deixaram a Venezuela e se estabeleceram na América Latina, principalmente na Colômbia, Peru, Equador, Chile e Brasil. Só na Colômbia, estima-se que existam quase 2,5 milhões de migrantes venezuelanos.
Mineração de dados para criar novas histórias
Do Chile, eles concordam que falta atenção ao segmento devido a generalizações negativas. No entanto, a fintech Galgo (ex-Migrante) se especializou em atender estrangeiros.
“O que você tem que fazer, assim como na concessão de qualquer crédito, é analisar bem a pessoa a quem se está concedendo o crédito. Em geral, as instituições financeiras não têm focado nos migrantes, porque não sabem distinguir quem é o bom pagador e quem é o mau pagador”, assegura Diego Fleischmann, CEO da Galgo, em entrevista à iupana.
Ele acrescenta que eles encontraram uma oportunidade no segmento e que, para as fintechs, a nacionalidade não é um fator que desfavoreça a balança de risco. Os maus pagadores podem ser chilenos, peruanos, americanos ou venezuelanos, diz.
A Galgo iniciou suas operações no Chile em 2018, incorporando um onboarding digital para clientes com a capacidade de validar documentos de identidade estrangeiros para entregar créditos para capital produtivo, como motocicletas ou carros. Com esta proposta já desembarcou em países como Peru, Colômbia e México. Mais recentemente, a empresa mudou de nome, com o objetivo de ampliar seu alcance de clientes.
“Depois de fazer várias experiências de financiamento, percebemos que os migrantes são muito bons pagadores”, revela o CEO. Mas, para isso, Fleischmann garante que é fundamental gerar uma matriz de risco especializada na análise de indicadores relacionados aos migrantes.
“O desafio é como ter dados suficientemente fortes para poder distinguir bons e maus pagadores”, diz ele. “Tem-se que identificar o nível de raízes de uma pessoa em um país. Muita gente [instituições financeiras] fala: vai vir e vai embora. Mas um migrante que chega a um país onde tenha parentes e certas raízes é diferente de um migrante que chega a um país onde não tem parentes”, exemplifica Fleischmann.
Construindo uma oportunidade
A falta de agilidade dos reguladores para atualizar seus regulamentos financeiros em relação aos estrangeiros também criou uma barreira na atenção.
Na Colômbia e no Peru, por exemplo, os estrangeiros não podem se inscrever digitalmente para abrir contas de poupança. O Bancolombia exige que os migrantes se dirijam a uma agência física e, no Peru, não podem candidatar-se à carteira digital Yape, a mais popular do país, duas pessoas da carteira confirmaram à iupana.
residem 1,5 milhão de venezuelanos, o que motivou o regulador a publicar em março um guia para a inclusão financeira da população refugiada e migrante, que enumera os documentos que devem ser apresentados para se candidatar a um produto financeiro.
No entanto, segundo a IFC, a falta de integração de dados em tempo real entre o órgão governamental, que emite documentos de identificação para migrantes, e o sistema financeiro impede os bancos de apoiar a integração digital.
“A grande maioria das instituições está dizendo: se não consigo validar os documentos em tempo real, não me interessa”, acusa Bower. “Uma fintech, com sua flexibilidade e agilidade, poderia atender às necessidades em um formato impossível para uma instituição financeira razoavelmente grande”, acrescenta o porta-voz da IFC.
No entanto, há um longo caminho a percorrer antes que esses tipos de soluções se tornem generalizadas.
Bower explica que, no caso dos refugiados ucranianos na Polônia, a IFC ajudou a integrar as informações do escritório do país de origem com as do país receptor; algo praticamente impossível de se fazer com o governo venezuelano, devido ao seu controle de informações e sua pouca abertura para colaboração com organismos internacionais.
No Peru, a corporação conseguiu fechar acordos para a geração de produtos financeiros para migrantes com a Financiera Confianza e, na Colômbia, com o Bancamía, ambas instituições da Fundación Microfinanzas del BBVA.
“O que temos visto é que tem sido muito grande o desafio de encontrar parceiros interessados em trabalhar diretamente com o segmento. É importante esclarecer que não buscamos parceiros de 'diversidade, equidade e inclusão'. Isso não é uma questão de inclusão, nem de caridade, é um negócio”, diz.